Farmacêutico “fora da caixinha”

Assumir responsabilidades para reduzir riscos

Hágabo M. Silva                                                                                                                         Baixe em pdf

 

É muito comum nos encontrarmos com o “farmacêutico caixinha”. Normalmente ele está presente em todos os lugares, é expert no ofício de confeccionar caixinhas de adesão para que seus pacientes tomem os medicamentos exatamente como está prescrito, sem falhas!

A habilidade e a criatividade do farmacêutico na confecção das caixas de adesão não têm fim: ele faz caixas coloridas, com laço, desenho de sol, lua, cores e tudo que for preciso para fazer com o que o paciente entenda como e quando usar os seus medicamentos. Até aí não há problemas. De fato sabemos que é essencial adaptar o uso dos medicamentos à realidade do paciente e faz parte desse processo adotar linguagens e mecanismos que otimizem e facilitem a compreensão dos pacientes sobre o uso dos medicamentos. Porém, é necessário dar um passo atrás (ou adiante) para refletir os conceitos que existem por detrás dessa prática.

A caixinha nesse caso simboliza os diversos dispositivos de adesão ao uso de medicamentos. Sabemos que em várias situações, a confecção desse dispositivo ocorre de maneira isolada e é reconhecida como uma atividade clínica do farmacêutico. Será que nosso papel é trabalhar a adesão, apenas? Seria a caixinha somente um dispositivo de adesão do paciente ao medicamento, ou poderia também representar o espaço protegido do farmacêutico e uma fuga da sua responsabilidade profissional?

Alguns desses questionamentos, já foram discutidos por Cipolle, Strand e Morley (2012) e Ramalho de Oliveira (2011), quando afirmam que nos falta uma identidade profissional clara. Além disso, nos foi proposto um modelo de raciocínio clínico para tomada de decisão sobre o uso de medicamentos, em que é necessário primeiro avaliar se o medicamento que o paciente está utilizando é apropriado para ele ou ela, seguido pela avaliação da sua efetividade, segurança, e, só após termos todas essas garantias, é que devemos partir para a avaliação da adesão do paciente, ou a avaliação do comportamento do paciente.

Os dispositivos de adesão, quando construídos sem um julgamento clínico conforme citado anteriormente, frequentemente podem trazer mais riscos do que benefícios aos pacientes. Por exemplo: quantos pacientes idosos estão sendo orientados a usar um betabloqueador nas doses e horários “corretos”,quando na verdade sua frequência cardíaca ou pressão arterial já se encontra baixa? O farmacêutico avaliou a indicação do medicamento? Será que conferiu a frequência cardíaca e a pressão arterial do paciente antes de dar a orientação? E se a hipotensão ou bradicardia levar o paciente a ter uma queda da própria altura e uma fratura de fêmur?
Sabemos que, de fato, os farmacêuticos são bem-intencionados, fazem o melhor que podem, tem amor pela profissão e fornecem ótimas orientações sobre uso correto dos medicamentos. Mas mesmo assim, isso não justifica uma conduta como a exemplificada.

O mais grave disso é pensar que qualquer um de nós pode ser ou já foi esse “farmacêutico caixinha”. Talvez por medo de fazer mais, de se coresponsabilizar pelos resultados em saúde do paciente, ou apenas pelo desejo de ajudar o paciente de alguma forma, nos apropriamos dessas atividades educativas, sem saber os riscos potencialmente associados a elas.
Mais uma vez aproveitando do sentido figurado, a caixa pode simbolizar nossa tentativa de nos integrarmos à equipe de saúde e ao mesmo tempo servir como nosso esconderijo ou casulo, onde nos abrigamos quando precisamos esconder. Afinal de contas, se alguém me perguntar como anda o estado de saúde do Sr. Antônio, eu digo que vai melhorar porque agora os medicamentos estão todos organizados e ele está tomando corretamente. Mas e após uma queda e fratura com o uso do betabloqueador? Eu vou me corresponsabilizar por ter feito a caixinha e motivado a adesão?

Muitas vezes, nós farmacêuticos ficamos em cima do muro: somos profissionais de saúde em alguns momentos, quando é conveniente, e em outros não mais. Como enfatizado por Ramalho de Oliveira (2011), é fundamental assumirmos responsabilidades. Não é mais possível continuarmos em cima do muro e realizarmos atividades pontuais e sem utilizar um raciocínio lógico e estruturado, como fazem todos os outros profissionais de saúde.
Além disso, as atividades educativas são importantes, mas não definem uma profissão. Elas podem ser realizadas por qualquer profissional de saúde. Como dito por uma colega farmacêutica do Núcleo de Apoio à Saúde da Família (NASF) após longo processo de reflexão: “… eu não estudei cinco anos para que minhas atividades clínicas se resumam em fazer caixas de adesão aos medicamentos e testificar as prescrições”. Além disso, é possível orientar outros profissionais de saúde, como agentes comunitários de saúde, para que elas façam os dispositivos de adesão quando for necessário. A diferença é que haverá nos bastidores outro profissional de saúde, o farmacêutico, que realizou um raciocínio clínico lógico sobre o uso de medicamentos antes de insistir na adesão do paciente ao medicamento prescrito.

Se a caixinha por um tempo funcionou como um dispositivo que permitia uma maior aproximação do farmacêutico ao paciente, não seria hora de desapegarmos dela e das condutas que ela simboliza, já que apesar de ser uma proteção para o medicamento (e falsa proteção para o farmacêutico), também pode ser uma ameaça à saúde dos pacientes?
Afinal, se somos profissionais de saúde o que é inseguro para o paciente deve ser evitado por nós! Vamos sair da caixinha!

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REFERÊNCIAS:
CIPOLLE, R. J.; STRAND, L. M.; MORLEY, P. C. Pharmaceutical Care Practice: The patient-centered approach to medication management services. 3 ed ed. New York: McGraw-Hill, 2012.
RAMALHO DE OLIVEIRA, D. Atenção Farmacêutica: da filosofia ao gerenciamento da terapia medicamentosa. São Paulo: RCN Editora, 2011.

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